10 anos sem Nise da Silveira
Confira depoimento inédito do maior nome da psiquiatria brasileira, que descobriu que a arte e a sensibilidade dos animais podem curar
“A galinha está chorando, a galinha está chorando!” Aos 92, Nise da Silveira, psiquiatra mundialmente conhecida por seu pioneirismo no uso da arte como terapia para pacientes esquizofrênicos, descrevia o seu primeiro choque com o tratamento dado aos animais. Em idade pré-escolar, no final do longo corredor que dava para a cozinha, ela viu uma ave amarrada pelos pés, pronta para virar sopa. “Meu pai, que era professor de matemática, estava se preparando para dar aula, ouviu aquele berreiro incrível e veio ver o que era”, conta. O prof. Faustino Magalhães da Silveira a encontrou entre gritos e lágrimas e quis saber o que trazia tanta tristeza para sua filha única. “Olhe a galinha, ela está chorando porque sabe que a cozinheira vai matá-la.”, explicou a criança. O homem então declarou à mestre-cuca: “Solte a ave e nunca mais a prenda. Aqui não se come mais galinha”.
O episódio foi uma das revelações presentes em um registro histórico desta grande personalidade brasileira feito pela ARCA Brasil em 1998, no apartamento de Nise no bairro do Botafogo (RJ), durante a gravação de um depoimento para a abertura do II Congresso Latino Americano de Bem-Estar Animal, evento organizado pela entidade, e que homenageou a médica.
Nise da Silveira, nascida em 1906 na cidade de Maceió (AL), foi uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no país. Especializou-se no cérebro humano e chegou a ser aluna do psicanalista alemão Carl Jung. Atuou principalmente no Hospital Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, onde fundou, em 1946, um centro de Terapia Ocupacional. Lá criou terapias alternativas aos tratamentos convencionais usados nos manicômios, que até então envolviam desde fortes medicamentos cheios de efeitos colaterais, até eletrochoques e cirurgias mutilantes.
Pela via da arte e da convivência com animais, métodos ainda incipientes naquela época, ela desenvolveu caminhos por onde os pacientes poderiam se comunicar e melhorar. O doente mais famoso foi Bispo do Rosário, suas obras e a de muitos outros, podem ser encontradas no Museu de Imagens do Inconsciente, criado por Nise em 1952.
Sensibilidade e acessibilidade
Nise chamava os animais de “co-terapeutas”. A possibilidade da participação dos bichos em tratamento surgiu de uma história inusitada: Um dos pacientes rompeu um silêncio de muitos meses ao entrar em seu gabinete pedindo dinheiro para comprar remédios. Surpresa ela parou o que fazia e com muito tato descobriu que a atitude repentina fora causada por um peludo de quatro patas. O homem queria ajudar o cachorro de estimação do hospital que tinha se ferido. Ao ver a intensidade dos sentimentos que o animal pôde despertar no universo desse indivíduo, que só então quebrou a barreira de silêncio que o separava da realidade, ela percebeu o potencial deste tipo de terapia.
A relação de Nise com os bichinhos não era apenas “profissional”. Além de estar sempre rodeada por gatos, ela conta que também teve um cãozinho. “Chamava-se ‘Top’ e era um cachorro feio, todo preto. Mas, aí de quem chamasse o Top de feio! Eu chorava e desmanchava qualquer festa infantil por causa dele”, lembra sorrindo. A relação da psiquiatra com os animais foi registrada no livro “Gatos, a emoção em lidar”.
A médica também foi uma notória protetora dos animais. Nos anos 90 escreveu uma carta aberta ao prefeito do Rio de Janeiro para que este deixasse de lado uma ação que pretendia matar os gatos de uma determinada região da cidade e adotasse ações de prevenção à superpopulação, como a castração e a conscientização contra o abandono. O político voltou atrás e teve que repensar na política que adotaria. “O animal é muito mais acessível, muito mais doce”, disse Nise à ARCA em 1998, “e o homem é um grosseirão, um bicho bravo. A sensibilidade do animal é muito mais fina e superior do que a sensibilidade do bicho gente”, completou.
A ARCA Brasil presta sua homenagem à Dra. Nise da Silveira, uma pessoa que trouxe uma nova dimensão para as relações entre homens e animais ao demonstrar o quão intensas podem ser as interações entre essas espécies e os grandes benefícios que podem gerar.
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